Debaixo da minha cama, vivem sombras de braços abertos e sem cabeça.
Naquele papel branco de luzes esbatidas e lençóis recolhidos, espreitei por recantos paralelos de fichas esquecidas e tomadas penduradas, que apontavam para luzes imaginárias.
Canetas gigantes riscavam tesouros de histórias em casas humanas, debaixo de camas e sofás perdidos, em cidades desorganizadas. Debaixo de tudo o que fosse habitado, por objectos sem movimento.
Segredos em aparas de lápis espalharam-se como flores, plantadas em ventres sépias, murmurando confidências iridescentes. Em minhas mãos, caíram focos de tons em flocos flutuantes, suspirados por sombras de braços abertos e sem cabeça, como se cada respiração luminosa fosse um conto escrito por bonecos de trapo.
Na taquigrafia de delírios ténues, as sombras de braços abertos e sem cabeça, pintaram as paredes do desenho em grafite e sanguinárias hesitantes, decalcando personagens familiares de vestes aéreas e fluidas.
A mais pequena e rechonchuda tinha um sorriso parado que desaparecia, assim que, percorria os corredores do colchão abotoado em farripas de madeira. A mais alta e espadaúda, não tinha nem mãos nem pés, apenas espirais de sombra líquida, que escorriam em pequenos nevoeiros fugazes, entre os dedos dos objectos translúcidos, que compunham aquela casa de fumo, debaixo da minha cama.
Em três contratempos e sem barítonos, as sombras de braços abertos e sem cabeça, rodearam-me, de linguagem amolada e riscos guturais, convidando a desenhar-me ali.
Contornos da minha sombra surgiram lentamente, em garatujas e comboios de pedra, despindo-se em lenços de claridade, como abas de um caderno amolgado dentro de uma mochila de lã. E minúsculas criaturinhas de sombras de braços abertos e sem cabeça, apareciam cintilantes e curiosas, para verem o meu esbracejar de traços rápidos e toscos, que rodopiavam em telas gás de meios-tons. Os meus poucos esboços de aviões, avionetas e dirigíveis de cartão, levantaram voo numa dança zunida, de abelhas transparentes e fios eléctricos. Em abobadas de ardósia ficaram traçados, tal como todos os animais alados e sem patas, os barcos de hélices voadoras, os bonecos de ferro abandonado, as rodas de comboios sem apitos, os cubos de arco-íris em madeira ferrugenta. Enfim, todos os sonhos de giz que foram traçados no pó do esquecimento.
Coxa de sono, puxei da borracha em minha almofada e quis ali adormecer, debaixo da minha cama, aconchegada pelas sombras de braços abertos e sem cabeça. Fechando os olhos em pestanas outonais, compus um Até já em solfejo pendente.
Sabia que na noite seguinte estariam ali, pois todos precisamos das nossas sombras de braços abertos e sem cabeça, debaixo das nossas camas.
Music : Another Rather Lovely Thing - Nick Cave & Warren Ellis
2 comentários:
Imaginação com asas e nostalgia dos tempos de criança... uma combinação de sentimentos que gosto de sentir e, com estas palavras fizeste-me senti-lo.
xx
Thks Raquel! A história (ou pequena historieta) sugiu assim que vi a fotografia. Alem de que ela foi realmente tirada debaixo da minha cama Lol. Mas tentei encurtar para não ficar muito extensa, pois aqui no blog não dá para "extender" muito se não torna-se cansativo.
Bjs deste lado
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